em flora assumpção,

1o.) um dia na vida

'floooóraaa... [ela diz meu nome cantado]. eu páro um ônibus e não subo. pego o de trás em sua companhia. ela está elegante com seus imensos óculos verdes e leve como sempre. divertida. sagaz.
levanto a cabeça e encontro seu olhar, como o de um ulisses muito pálido, a me olhar. o tempo de fumar um cigarro. um convite para sexta à noite. o sorriso volta a meus olhos cansados.
ele vem caminhando em minha direção e a caminho de nossa casa antiga. largos sorrisos e abraço longo. o tempo de um outro cigarro. e nos vemos após o almoço desta sexta. o sorriso fica nos meus lábios.
livro fechado na mão e corrida pequena para o trem. num quase reflexo a escolha por um vagão me traz você, que eu não vislumbrava há 10 meses, já em pé de fronte a mim. seis estações e descemos. para mim ainda um outro vagão de tantos outros deste dia e para você o céu com todas as nuvens.

e depois agora o que me vem?

um desencontro sem ver navios. quatro encontros fortuitos. um dia como hoje é difícil não crer no destino ou no acaso.


2o.) As águas azuis

primeiro eu nado até a respiração no meio líquido ser o natural para meus pulmões.
daí eu nado até as borbulhas do meu expirar estalarem em meus tímpanos como o som de conchas em corais e porcelana fria.
então eu nado até a fadiga em meus músculos confundir o sopro do vento na água com a correnteza do rio e a força do mar.
por fim eu nado até o cinza fechar o céu e o intenso azul só existir submerso e longínquo. inatingível. etéreo. e até a superfície da água tremular com a primeira chuva que cai.

3o.) Sobre uns dias no mar


o dia se vai cai some é engolido no mar
pelo mar 
meus olhos aprendem apreendem desenham ganham espaço: aqui a velocidade é outra 
o tempo perdido entre as ondas: o tempo entre as ondas

viver é entre as ondas 
é aqui que você vive.

o dia nasce entre as ondas
e eu permaneço ainda aqui 
o sal é nos olhos.

no mar o centro do abdômem é outro
o giro dos ombros
a força do quadril
o porquê da perna 
águas profundas de dança
o tempo da dança é outro 
o balanço é do mar
a capoeira é no mar
a ginga da água é o mar 
no mar o tempo é outro
no mar o som é espaço
o espaço é som e tempo
o mar 
o sal é dos olhos.


['você sempre vai me encontar nas aguas do matadeiro e na ilha.'
'eu vou estar sempre aqui na armação.' 
'marinheiro marinheiro 
quem te ensinou a navegar
foi o tombo do navio
foi o balanço do mar']

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pálpebras amolecidas de sol
cílios ferventes descobrem cores adulteradas ofuscadas
corpo lasso d'água curtido de sol vertendo sal
vento sonoro soprando surdo em águas caudalosas

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eu quero passar. eu não quero ficar.


o mar. o mar. o mar. o mar. o mar. o mar. passou. já era. se foi. 



4o.) Sobre a nossa terra casa

a solidão é só daqueles que você ama.

um relicário imenso. um relicário deste amor.



o som seco das gotas nas folhas das bananeiras molha o ar fresco na penumbra do dia que finda e na penunbra do céu brusco. 


a água da chuva olha molha tudo que olha molha
não há onde sentar.
eu me descanso de cócoras.
eu queria poder desaparecer na penumbra da mata pra poder guardar este momento pra sempre e não haver mais nada. 
daí eu ouço uma voz cantando como a sua e eu vejo um vulto se aproximando ao longe e ele se parece com você.
e minhas pernas e pés adormecidos e agulhantes somados à escuridão e ao chuvisco me mandam de volta pra nossa casa de encontro a sua voz. 

eu calcei suas enormes e desajeitadas botas de borracha preta, meu irmão
e caminhei por nossa terra agora em charco pelas chuvas
escutei o rosnado feroz do girar das asas do beija-flor veloz
aprendi o som do sopro que chama por grandes borboletas azuis 
guardada pela abóbada de rendada folhagem verde de formigas e picões contra a névoa macia do céu brusco
vi os líquens-borboletas me rodearem planando leve 
eu quis ver de perto as águas do córrego correrem fugirem no seu murmurio opulento
no seu silêncio eu ouço as gotas d'água caírem no solo e nas folhas 
eu fui vencida pelo afundar do solo pantanoso
mas eu trago a você, minha bela irmã, as flores-garças que alcancei mais longe 
[lírios-garças são os meus preferidos]
seu perfume me inunda com sua beleza. 
e me conforta [quando estou longe daqui] 
eu vi no solo os frutos apodrecidos pela umidade e o vigor abundante das plantas
eu senti a agulha inesperada do espinho mergulhar em meus dedos
e escutei o silêncio do farfalhar das águas invadido por duas violas solitárias melodias
e quando a escuridao absorveu a luz de meus olhos eu retornei a nossa casa.

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Flora Assumpção. O Mar do Tempo Perdido, 2007. Gravura em metal (ponta seca). 100x200cm. Documentação da exposição no Paço das Artes, 2007/2008.



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