em enrique vila-matas,

"Cansado do eu", começaria dizendo naquela noite, em Sevilha. Mais que isso, afirmaria taxativamente: "Cansado do eu". E passaria a dissertar sobre aquela qualidade tão refinada de Hamlet que consistia em não ter identidade e, menos ainda, um rosto próprio. "A identidade é uma carga pesadíssima, e é preciso se libertar dela", diria entre outras coisas. E recordaria aqueles conselhos de Polônio a Laertes: "Escuta a todos, mas que o tom de tua voz só alguns conheçam, e que ninguém saiba o que pensas; deixa que eles se espraiem. Deixa que os outros falem, permanece em teus abrigos de inverno". (p. 48)

[...]

Por aí começaria meu discurso da cartuxa e veria, depois, por onde acabava. Mas de repente observei que substituir o eu pelo ele era, na realidade, um absurdo simulacro da desaparição do eu. Ou por acaso não me lembrava do que se passou com Roland Barthes quando, depois de escrever sua autobiografia em terceira pessoa acabou, três anos depois, confessando seu desejo, irrefreável  e para ele absolutamente necessário, de voltar a dizer eu? "É o íntimo o que quer falar em mim", escreveu então Barthes, como se tivesse se arrependido da veleidade da terceira pessoa. (p. 58)
(in: Doutor Pasavento, Cosac Naify, 2010)

Nenhum comentário: